quinta-feira, 3 de março de 2011

HOMENAGEM


Moacyr Scliar: dois artigos mostram um pouco da beleza de sua obra

Moacyr Scliar Z`L`nasceu em Porto Alegre , em 1937. Graduado em medicina, especializou-se em saúde pública. No campo da literatura, escreveu mais de 70 livros e ganhou vários prêmios, inclusive  o Jabuti (quatro vezes) e ocupava a 31ª cadeira da Academia dos Imortais (ABL). O autor, que já estava internado por causa de um AVC, faleceu aos 73 anos de idade, sendo velado na Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul,   em Porto Alegre.

Reproduzimos dois artigos de sua autoria, um sobre o que um pai judeu deseja para seu filho, divulgado pelo Colégio I. L. Peretz, e outro sobre projetos que deixamos na gaveta. Ambos dão a dimensão de como sua pena fluía sobre os mais variados temas, tocando a cada um de nós.

A literatura, a cultura e a sociedade brasileira perderam um grande escritor, um autor que soube como poucos inserir e consolidar a temática judaica na literatura brasileira, e mais do que isso, um homem com acurada sensibilidade, cujos textos trazem um pedacinho de cada ser humano, com suas dúvidas, incertezas e mazelas, com suas alegrias e superações. Sua obra,  atemporal, é um verdadeiro presente para a humanidade.  



Sonho de Pai

Num destes dias, dei uma palestra para o círculo de pais e mestres do Colégio Israelita Brasileiro, em Porto Alegre. Às tantas, perguntaram-me se eu colocaria o meu filho - que vai fazer dois anos - no colégio. Respondi que sim. E aí perguntaram-me o que esperava eu do colégio. É o que respondo agora.

Talvez seja melhor dizer, primeiro, o que não espero do colégio, e isto pode ser resumido numa frase: não espero, e não desejo, que um colégio judaico transforme o meu filho num ritualista, numa pessoa que cumpre preceitos religiosos sem saber exatamente o que está a fazer, nem por quê; numa pessoa rígida, intolerante, voltada para o passado ao invés de estar preocupada com o presente e com o futuro.

Não digo que o passado não seja importante. Eu gostaria que o meu filho conhecesse a história judaica e, sobretudo, que a entendesse como parte da história da humanidade. Gostaria que o meu filho soubesse que tudo que aconteceu aos judeus não resultou nem do acaso, nem de um desígnio misterioso; se os judeus foram muitas vezes bode expiatório, isto aconteceu porque foram apanhados no entrechoque violento de forças e interesses contraditórios: feudalismo versus capitalismo, capitalismo versus socialismo e assim por diante.

Eu gostaria que este conhecimento da História e dos mecanismos que fazem a sociedade dessem ao meu filho sabedoria e tranquilidade; que o livrassem dos fantasmas da paranóia, doença tão comum entre nós.

Eu gostaria que o meu filho tivesse acesso à cultura judaica, tanto por ela ser judaica, como por ser cultura. Gostaria que ele tivesse o mesmo prazer e a emoção eu que sinto ao ler os contos de Scholem Aleichem, Mendele e Peretz; as histórias de Isaac Babel e Michael Gold; os livros de Below, Malamud, Bashevis Singer e Philip Roth. Gostaria que ele ficasse extasiado diante dos quadros de Chagall, que gostasse de música Yidish, das canções hebraicas, da dança de Israel. Gostaria, modestamente, que ele lesse o que eu escrevi e que sentisse o judaísmo nos meus próprios livros: gostaria disto, como pai e como judeu.

Gostaria que o meu filho tivesse bagagem intelectual sem ser pedante; que compreendesse que literatura, música e pintura devem tornar as pessoas melhores - não superiores - que sentir é tão importante como saber. Gostaria que ele aprendesse a chorar como só os judeus sabem chorar, e a rir como nós: aquele nosso meio sorriso, meio amargo, meio filosófico.

Gostaria que o meu filho estivesse solidário com Israel. Que compreendesse o quanto o Estado significou em termos de elevar a dignidade do povo judeu e da magnífica experiência humana. Gostaria que o meu filho tivesse a mentalidade de um kibutznik, mesmo vivendo no Brasil, ou talvez justamente por isto: gostaria que o meu filho tivesse um ideal e que lutasse por ele, não se sacrificando, porém, a fantasias neuróticas.

Gostaria que o meu filho não fosse um sectário: que não colocasse, em pólos irremediavelmente opostos, judeus e árabes, israelenses e palestinos. Que soubesse que neste mundo há lugar para todos, é só uma questão de ajuste. Que soubesse que, de cada vez que há uma guerra, alguém lucra com isso.

Não sei se é pedir demais em troca da mensalidade escolar. Mas, afinal, a educação tem uma componente de sonho enxertado na dura realidade cotidiana. E sonhar não é proibido.

Moacyr Scliar



Os Projetos na Gaveta

Todos temos, em nossas gavetas, uma pasta com fragmentos de papel em que garatujamos algo que poderia ser a fórmula de nossa felicidade.

Tenho, numa gaveta, uma pasta de cartolina na qual escrevi Ideias. Seu conteúdo: folhas de papel, dos mais variados tamanhos e formatos, incluindo bloquinhos de anotações de hotel, convites para eventos e lançamentos de livros (um destes de minha autoria), folhetos de propaganda. Em todas essas folhas há algo rabiscado:

as ideias. Ideias para contos, ideias para crônicas, ideias para livros até. Ideias em profusão, ideias que ao longo do tempo me iam ocorrendo e que eu, como tantos que escrevem, anotava para posteriormente desenvolvê-las. O que, na imensa maioria dos casos, nunca aconteceu. E isso por várias razões.Para começar, em muitos casos não consigo entender o que escrevi. Em parte isso resulta da famosa letra de médico, uma situação que, a propósito, não deixa de ser intrigante: de onde viria essa fama de clássica ilegibilidade? Da pressa com que os doutores, sempre lutando com a falta de tempo, escrevem? Ou seria uma curiosa manifestação de poder, tipo "decifra-me ou te devoro", como dizia a esfinge na história de Édipo? Ou simples desleixo? Mistério, mas de qualquer maneira, uma questão à parte, mesmo porque, além desse componente, digamos, profissional, pesavam as circunstâncias em que as mensagens eram escritas: num carro sacolejante, por exemplo. Ou no meio da noite, os olhos fechando de sono.

Como se isso não bastasse, mesmo legíveis, as anotações revelam-se crípticas, misteriosas. Citando ao acaso: "A frase no sonho", "Inventário das dores", "Catastróficos e deslumbrados", "Ator morre antecipando a morte", "Se Deus se materializasse", "História do cirurgião que inventa uma operação maravilhosa", "Foi melhor assim".

Vamos ficar só com estas duas últimas. "História do cirurgião que inventa uma operação maravilhosa". Que operação seria essa? Que doença ela curava, que problema resolvia? E o que acontecia, Perguntas intrigantes. Mas "Foi melhor assim" é, em matéria de enigma, ainda pior. "Foi melhor assim" - o quê? De que fala, essa frase? A quem se refere? Que história ela resume?

Todas estas anotações têm uma coisa em comum: são projetos que não decolaram. Por quê? Porque não tinham em si próprios a carga criativa suficiente para impô-los a seu próprio autor? Porque tornaram-se incompreensíveis? Estas coisas envolvem um grau de mistério que não é pequeno. E aludem a esse aspecto característico da condição humana: todos temos sonhos não realizados, objetivos não atingidos. Todos temos, em nossas gavetas, uma pasta com fragmentos de papel em que garatujamos apressadamente algo que certamente poderia ser a fórmula de nossa própria felicidade. Ah, se ao menos lembrássemos o que ali escrevemos. Se ao menos entendêssemos nossa própria letra.

Moacyr Scliar

Edição : Lia Bergmann - Assessora de Direitos Humanos e Comunicações da B'nai B'rith do Brasil

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